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Entre a vista.

por bloga-mos, em 27.11.14

Que empregos já experimentou?

Os que estavam disponíveis. Jardineiro, cabeleireiro, cozinheiro e técnico de lavandaria. Todos horríveis.

Parece novo para tanta experiência.

Fazem formação em posto de trabalho, pode começar-se qualquer um a todo o momento; até nos incentivam nesse sentido.

O que é que correu mal?

Com qual?

Com todos.

Não me lembro.

Lembra-se que foram horríveis.

Está mesmo interessado?

[aceno]

Meteram-me a trabalhar com gajos que acreditam ser o Kennedy, o Napoleão ou o Dom Sebastião. Está a ver o dó de imaginação que para aqui vai, mesmo para um gajo que bate mal dos cornos? E não estou a brincar, era assim que chegavam ao trabalho. Bom, estou aqui, pensei eu, vamos lá, mas o esterco faz-me um bocado de confusão, e convenhamos que uma lavandaria tem tudo para correr mal. Foi o primeiro. Nesse trabalhava com dois tipos que se atropelavam para receber os clientes. Desafiavam quem entrasse com apostas sobre os respectivos poderes de adivinhação. O primeiro, filho de um astrólogo daqueles da televisão, garantia saber de caras o signo e ascendente de qualquer pessoa. Falhou de todas as vezes. Olhe que não estou a exagerar, nunca acertou. À primeira pelo menos. O segundo, que era filho de um feirante, garantia que acertava no tamanho e copa dos soutiens das senhoras que tinha à frente. Nunca falhou, mesmo quando estavam tapadas com casacos grandes e golas altas ou écharpes compridas. A infância deste infeliz foi passada a vender soutiens numa feira, e, numa feira, experimentar é complicado. Sei lá, acho que isto não é talento, é repetição, mas a verdade é que acertava sempre. Obviamente que nenhuma delas achava piadinha nenhuma a isto, a maior parte ia-se embora, algumas ficavam, deslumbradas com o outro tonto que sabia imenso de astrologia, e que tinha acertado à terceira ou quarta vez no signo. Enfim, pedi para ir para uma cozinha depois disto, confiante que não veria clientes, mas entrei numa sala fechada com seis doidos rodeados de facas e de recipientes de água a ferver. Tive medo, mas estava a ser estúpido. O trabalho de cozinha é de uma apatia que quase me comoveu, mas deste fui expulso.

Porquê?

Não resistia a fazer certas coisas e não aturava certas merdas.

Não estou a perceber.

O quê?

Pode dar-me exemplos? A que é que não resistia?

Bem, segui para a jardinagem, o problema é que tinha de escolher sempre um, compreende? Não podia estar ali sem fazer nada, escolhi jardinagem. Foi onde encontrei o Kennedy.

Fale-me desse.

Do Kennedy?

Estamos a falar do seu colega, não é?

Há outro Kennedy?

Hum

Estou a meter-me consigo [risos]. Este maluco pensava que era o Kennedy, é verdade. O Presidente dos EUA, o que foi assassinado. E tinha de levar todos os dias com isto. Atirava-se para o chão a qualquer barulho, fazia discursos, mas sobretudo nunca fechava a matraca. Este gajo trabalhava a falar em permanência. Eu acabava o dia com os nervos desfeitos. Bom, andávamos ali pelos jardins municipais. Os serviços da Câmara eram chantageados para nos adjudicar tudo o que quiséssemos, porque - está a ver não é? - coitadinhos, e um dia estávamos por acaso no jardim do hospital e o Kennedy pega num gancho e encosta-o ao pescoço de um desgraçado que só ia a passar, era o contabilista, tinha mais de um metro e noventa e urinou-se todo pelas calças abaixo, nunca mais nos esquecemos. O Kennedy só dizia que ia ser assassinado e chamava pelos serviços de segurança. Bom, vieram os enfermeiros e levaram-no e o gajo lá gritava que era o Booth, que era o Booth, o estúpido. Quer dizer, o Booth tinha para aí um metro e setenta

O Oswald.

Como?

Ele não gritava Oswald?

Sim, e o que é que eu disse?

Desculpe, continue.

Estive lá os três anos, depois um gajo tem de ir à sua vida, acaba o emprego protegido e eu fui à procura, mas passados seis meses estava de volta, não arranjei nada e fui ao que faltava: cabeleireiro. Não passei da formação e nunca devia ter começado. Felizmente deste não tive de pedir para sair, o curso foi interrompido. Estava para lá um, que entrou ao mesmo tempo que eu, uma bisarma descomunal, cabelo rapado, barba de meses, a primeira coisa que me disse foi que não era maluco como os outros. Olha-me este, está-se mesmo a ver. Eu sei que sou maluco, não tenho é paciência para malucos, que é bem diferente, mas dizia eu, que ele diz-me isto e estende-me a mão para apertá-la. Tenho justificado orgulho no meu aperto firme, mas este gajo esmagou-me os dedos de tal forma que soltei um grito, fraquejaram-me os joelhos, acredite, e o sacana com um sorriso cândido sem tirar os olhos dos meus. Olhe que, convenhamos, merdas de macho alfa num cabeleireiro, com franqueza. Ninguém passou do primeiro dia. Não sei se sabe, nestas formações treinamos com manequins. Este animal, só com a escova a puxar o cabelo das bonecas, arrancou a cabeça a três. Depois pedia imensa desculpa, parecia uma criança, mas aquilo tinha de parar por ali e uma das formadoras lá ganhou coragem e disse-lhe que não podia continuar, tinha de escolher outro ofício e o tipo passou-se e destruiu aquilo tudo. Espelhos, cadeiras, secadores, em cinco minutos o chão era um mar de entulho e a formação acabou para todos. Agora cá estou.

Já lhe perguntaram o que é que realmente gostava de fazer?

Sim, perguntam sempre.

E responde o quê?

Repositor de supermercado.

Está a falar a sério?

Repositor de supermercado.

Mas isso não deve ser complicado de conseguir.

É complicadíssimo. Já tentou candidatar-se a repositor?

Quer dizer, não, mas

Há sindicatos, há lobbies, isto é o emprego que toda a gente quer. Arrumar artigos, compor cinco prateleiras em altura, é trabalho criativo, dá gozo.

Nunca tinha visto as coisas assim.

Por isso é que é jornalista.

Eu não sou jornalista.

ah não?

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publicado às 16:53


11 comentários

De Gaffe a 28.11.2014 às 11:58

O meu menino anda a ler Inesco? a encenar Artaud?

De bloga-mos a 28.11.2014 às 13:48

O Beckett tem vindo a pôr-se de permeio o que só atrapalha algumas fazeduras. Já tenho a SPA em alerta total...

De Gaffe a 28.11.2014 às 13:52

Valha-me Deus! Como eu gosto de si!

De bloga-mos a 28.11.2014 às 13:56

Dou o dia como inteiramente ganho mesmo que seja atropelado, Princesa...

De Mana a 28.11.2014 às 13:56

Cum caraças! Que Lego é que não te deram quando eras puto??

(agora fizeste-me lembrar um dos meus contos de natal destrambelhados; que é o que tu és, realmente...)

De bloga-mos a 28.11.2014 às 13:58

Um dia repleto de felicidade aguarda por mim...

De Mana a 28.11.2014 às 14:00

'Péra lá que já te mostro uma coisa:

http://pseudoblogdapseudo.blogspot.pt/2005/12/conto-de-natalou-talvez-no.html

(dos tempos em que eu era um cadito tola, sabes...)

De Mana a 28.11.2014 às 14:02

E ainda tens este:

http://pseudoblogdapseudo.blogspot.pt/2006/11/conto-de-natal-ii.html


E este (saiu mais fraquito):
http://pseudoblogdapseudo.blogspot.pt/2011/11/conto-de-natal-iii.html

Agora lê, tá bem?

De bloga-mos a 28.11.2014 às 14:06

Já os tinha lido querida Mana e ficas a saber que muito lubrificaram a minha tendência para disparatar...

De Mana a 28.11.2014 às 14:10

As minhas palavras não são, nem parcialmente nem totalmente, responsáveis pelos teus ditos, ok? Eu não tenho as costas largas, ok? Mau!!

De bloga-mos a 28.11.2014 às 14:35

Não as tens muitas largas é certo mas são bem delineadas vistas de perfil...

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