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Um blog duvidoso mas mesmo muito duvidoso.
Que empregos já experimentou?
Os que estavam disponíveis. Jardineiro, cabeleireiro, cozinheiro e técnico de lavandaria. Todos horríveis.
Parece novo para tanta experiência.
Fazem formação em posto de trabalho, pode começar-se qualquer um a todo o momento; até nos incentivam nesse sentido.
O que é que correu mal?
Com qual?
Com todos.
Não me lembro.
Lembra-se que foram horríveis.
Está mesmo interessado?
[aceno]
Meteram-me a trabalhar com gajos que acreditam ser o Kennedy, o Napoleão ou o Dom Sebastião. Está a ver o dó de imaginação que para aqui vai, mesmo para um gajo que bate mal dos cornos? E não estou a brincar, era assim que chegavam ao trabalho. Bom, estou aqui, pensei eu, vamos lá, mas o esterco faz-me um bocado de confusão, e convenhamos que uma lavandaria tem tudo para correr mal. Foi o primeiro. Nesse trabalhava com dois tipos que se atropelavam para receber os clientes. Desafiavam quem entrasse com apostas sobre os respectivos poderes de adivinhação. O primeiro, filho de um astrólogo daqueles da televisão, garantia saber de caras o signo e ascendente de qualquer pessoa. Falhou de todas as vezes. Olhe que não estou a exagerar, nunca acertou. À primeira pelo menos. O segundo, que era filho de um feirante, garantia que acertava no tamanho e copa dos soutiens das senhoras que tinha à frente. Nunca falhou, mesmo quando estavam tapadas com casacos grandes e golas altas ou écharpes compridas. A infância deste infeliz foi passada a vender soutiens numa feira, e, numa feira, experimentar é complicado. Sei lá, acho que isto não é talento, é repetição, mas a verdade é que acertava sempre. Obviamente que nenhuma delas achava piadinha nenhuma a isto, a maior parte ia-se embora, algumas ficavam, deslumbradas com o outro tonto que sabia imenso de astrologia, e que tinha acertado à terceira ou quarta vez no signo. Enfim, pedi para ir para uma cozinha depois disto, confiante que não veria clientes, mas entrei numa sala fechada com seis doidos rodeados de facas e de recipientes de água a ferver. Tive medo, mas estava a ser estúpido. O trabalho de cozinha é de uma apatia que quase me comoveu, mas deste fui expulso.
Porquê?
Não resistia a fazer certas coisas e não aturava certas merdas.
Não estou a perceber.
O quê?
Pode dar-me exemplos? A que é que não resistia?
Bem, segui para a jardinagem, o problema é que tinha de escolher sempre um, compreende? Não podia estar ali sem fazer nada, escolhi jardinagem. Foi onde encontrei o Kennedy.
Fale-me desse.
Do Kennedy?
Estamos a falar do seu colega, não é?
Há outro Kennedy?
Hum
Estou a meter-me consigo [risos]. Este maluco pensava que era o Kennedy, é verdade. O Presidente dos EUA, o que foi assassinado. E tinha de levar todos os dias com isto. Atirava-se para o chão a qualquer barulho, fazia discursos, mas sobretudo nunca fechava a matraca. Este gajo trabalhava a falar em permanência. Eu acabava o dia com os nervos desfeitos. Bom, andávamos ali pelos jardins municipais. Os serviços da Câmara eram chantageados para nos adjudicar tudo o que quiséssemos, porque - está a ver não é? - coitadinhos, e um dia estávamos por acaso no jardim do hospital e o Kennedy pega num gancho e encosta-o ao pescoço de um desgraçado que só ia a passar, era o contabilista, tinha mais de um metro e noventa e urinou-se todo pelas calças abaixo, nunca mais nos esquecemos. O Kennedy só dizia que ia ser assassinado e chamava pelos serviços de segurança. Bom, vieram os enfermeiros e levaram-no e o gajo lá gritava que era o Booth, que era o Booth, o estúpido. Quer dizer, o Booth tinha para aí um metro e setenta
O Oswald.
Como?
Ele não gritava Oswald?
Sim, e o que é que eu disse?
Desculpe, continue.
Estive lá os três anos, depois um gajo tem de ir à sua vida, acaba o emprego protegido e eu fui à procura, mas passados seis meses estava de volta, não arranjei nada e fui ao que faltava: cabeleireiro. Não passei da formação e nunca devia ter começado. Felizmente deste não tive de pedir para sair, o curso foi interrompido. Estava para lá um, que entrou ao mesmo tempo que eu, uma bisarma descomunal, cabelo rapado, barba de meses, a primeira coisa que me disse foi que não era maluco como os outros. Olha-me este, está-se mesmo a ver. Eu sei que sou maluco, não tenho é paciência para malucos, que é bem diferente, mas dizia eu, que ele diz-me isto e estende-me a mão para apertá-la. Tenho justificado orgulho no meu aperto firme, mas este gajo esmagou-me os dedos de tal forma que soltei um grito, fraquejaram-me os joelhos, acredite, e o sacana com um sorriso cândido sem tirar os olhos dos meus. Olhe que, convenhamos, merdas de macho alfa num cabeleireiro, com franqueza. Ninguém passou do primeiro dia. Não sei se sabe, nestas formações treinamos com manequins. Este animal, só com a escova a puxar o cabelo das bonecas, arrancou a cabeça a três. Depois pedia imensa desculpa, parecia uma criança, mas aquilo tinha de parar por ali e uma das formadoras lá ganhou coragem e disse-lhe que não podia continuar, tinha de escolher outro ofício e o tipo passou-se e destruiu aquilo tudo. Espelhos, cadeiras, secadores, em cinco minutos o chão era um mar de entulho e a formação acabou para todos. Agora cá estou.
Já lhe perguntaram o que é que realmente gostava de fazer?
Sim, perguntam sempre.
E responde o quê?
Repositor de supermercado.
Está a falar a sério?
Repositor de supermercado.
Mas isso não deve ser complicado de conseguir.
É complicadíssimo. Já tentou candidatar-se a repositor?
Quer dizer, não, mas
Há sindicatos, há lobbies, isto é o emprego que toda a gente quer. Arrumar artigos, compor cinco prateleiras em altura, é trabalho criativo, dá gozo.
Nunca tinha visto as coisas assim.
Por isso é que é jornalista.
Eu não sou jornalista.
ah não?
Em exclusivo venho informar que entre a próxima 2ª e 5ª estarei ocupado na peculiar tarefa de ciceronear uma brasileira amiga da minha ex (esta moça não me larga graças a zeus) que nunca veio a Portugal e tem um estranho fetiche com castelos. Pelo sim e especialmente pelo não pedi ao Costa que adiasse a visita ao Sócrates e que me tenha aquelas pedras a brilhar como a testa dele no quadratura do círculo. Não foi possível até ao fecho desta edição vespertina confirmar a disponibilidade por mim requerida.
Acabei de dar informações sobre a localização do Museu Nacional de Arte Antiga a uma cidadona europeia com tamanha altura que me provocou um delíquio invertido.
O meu gosto por exercícios especulativos leva-me à seguinte impertinente questão: como seria o meu dia se em vez de ter abandonado o leito com o jingle bells a confraternizar com os meus pobres neurónios o tivesse feito com as chamadas três notas de um acorde perfeito que são como sinos do Arvo Pärt? Hum? (ninguém me pergunte como logrei colocar aquelas duas caganitas em cima do 2º A do Estónio).