Auto-emoción
Tenho seguido com invulgar atenção o problema da crise. A crise é grave, grande e, sobretudo, surpreendente. Quase tão surpreendente como a minha atenção.
Percebo que querem que eu perceba que se trata aqui - e eu falo disto da crise - duma coisa que era imprevisível e imponderável antes de acontecer. O que me dizem, o que querem que eu entenda, aquilo que querem que me penetre o bestunto, é uma ideia simples: "olha, homem, nós vínhamos por bom caminho mas, que chatice, agora aconteceu esta chatice e, efectivamente, é uma chatice; tudo azares e, eventualmente, umas vigarices: sim, umas vigarices, isso pode acontecer; mas atenção, vínhamos por bom caminho, hem?, não esquecer isto, hem?; vínhamos por bom caminho e, sobretudo, devemos fazer tudo para o manter, ao caminho, isso é que tem de ser, sim, homem? Bom."
A ideia é mais ou menos esta.
O mercado auto-regula-se. Evidentemente. É como os intestinos: até certo ponto, auto-regulam-se. Depois, pode ser preciso regulá-los. E, talvez mais barato e mais útil que regular os intestinos - já que a dada altura deixam de se auto-regular causando prejuízo ao possuidor da tripa e ao resto da malta que paga a regulação ulterior - seja uma colonoscopia anual a quem tem intestinos em risco. A Europa Cólon não me paga nada, mas faça uma colonoscopia aos 50 anos, senhor que me lê, e faça-se sócio desta agremiação sem fins lucrativos e extremamente bondosa.
O mercado livre mais famoso e lucrativo do mundo acho que chegou a ser um mercado de escravos. Nada mais livre do que ser escravo, desde que a liberdade maior seja "tenho ao menos pão". Pensem nisso se quiserem. E quando chegarem aos 50 anos, tendo pensado nisso ou não, vão meter o tubo no cu, a ver se a vossa tripa anda com potencial para se auto-regular ou se aqueles tenesmos, aqueles puxos, aquela sanguinolência no papel, aquelas coisas, são apenas do hemorroidal ou se já são causados pelos "vigaristas, e tal, do bom caminho, sempre do bom caminho, mas e tal, os tumores e isso".
Eu ainda me falta muito tempo para isso, farei 50 anos apenas daqui a muitos dias (mas menos de mil, tem graça, menos de mil dias) embora ande invulgarmente preocupado com a crise. Só não digo aqui nomes de tumores por temores de vos maçar e, além disso, por poder ir, às tantas, preso.